Do Leite ao Queijo: O Processo de Fermentação Explicado em Detalhes

O queijo é um dos alimentos mais antigos e amados do mundo. De tábuas sofisticadas a receitas simples do dia a dia, ele conquista pelo sabor, textura e versatilidade. Mas você já parou para pensar em como o leite se transforma em queijo?

Por trás de cada pedaço de queijo existe um processo complexo e fascinante de fermentação. Uma verdadeira alquimia entre o tempo, os microrganismos e a habilidade humana. Neste artigo, vamos mergulhar fundo nesse universo e explicar, passo a passo, como o leite se transforma em queijo — desde os primeiros microrganismos até a maturação final.

Prepare-se para conhecer o processo de fermentação como você nunca viu: com clareza, detalhes e um toque de paixão por essa arte milenar.

1. A Base de Tudo: O Leite

Tudo começa com o leite — e não qualquer leite. A escolha do tipo e da qualidade do leite faz toda a diferença no resultado final. Os mais usados são:

  • Leite de vaca: o mais comum, base de queijos como parmesão, mussarela e gouda.
  • Leite de cabra: sabor mais intenso, base de queijos como chèvre e bûche.
  • Leite de ovelha e búfala: usados em queijos como pecorino e mozzarella di bufala.

A composição do leite é essencial para o processo:

  • Água: cerca de 87%
  • Proteínas: principalmente caseína, que forma a base do queijo
  • Gordura: influencia a cremosidade
  • Lactose: o açúcar do leite, que será “comido” pelas bactérias
  • Sais minerais: cálcio, fósforo e outros

A qualidade do leite depende de fatores como alimentação do animal, sanidade, ordenha e armazenamento. E há uma grande diferença entre usar leite cru (não pasteurizado) e leite pasteurizado — o primeiro conserva microrganismos naturais que contribuem para a complexidade do sabor, mas exige mais cuidado sanitário.

2. O Início da Transformação: Entendendo a Fermentação

A fermentação é o coração do processo. Ela acontece quando bactérias específicas consomem a lactose (açúcar do leite) e produzem ácido lático como subproduto. Esse ácido acidifica o leite e altera sua estrutura química, dando início à transformação em queijo.

Esse processo é feito por bactérias ácido-lácticas (BALs), como Lactococcus lactis, Lactobacillus helveticus, Streptococcus thermophilus, entre outras. Elas podem estar naturalmente presentes (fermentação espontânea) ou ser adicionadas (fermentação controlada).

A fermentação tem funções vitais:

  • Acidificar o leite
  • Precipitar as proteínas
  • Inibir bactérias indesejadas
  • Iniciar a formação de sabor e aroma

Esse processo começa logo após o leite ser inoculado com as culturas e aquecido a uma temperatura ideal para essas bactérias se multiplicarem.

3. Fermentos e Culturas: Os Microrganismos por Trás do Sabor

Os queijeiros utilizam culturas iniciadoras para garantir um processo controlado. Existem dois grupos principais:

  • Culturas mesofílicas: atuam em temperaturas mais baixas (20–30°C), ideais para queijos frescos e semiduros.
  • Culturas termofílicas: suportam temperaturas mais altas (40–45°C), usadas em queijos cozidos como parmesão e gruyère.

Além das culturas iniciadoras, há também as culturas secundárias, que atuam na maturação e criam características únicas:

  • Penicillium camemberti – para a casca branca de brie e camembert
  • Penicillium roqueforti – para o interior azul dos queijos como roquefort
  • Brevibacterium linens – dá cor laranja e aroma forte a queijos lavados

Esses microrganismos são responsáveis por transformar o queijo ao longo do tempo, atuando sobre gorduras, proteínas e açúcares.

4. A Coagulação do Leite: Enzimas em Ação

Com o leite acidificado, é hora de adicionar o coalho, uma enzima que faz a caseína coagular, formando um gel chamado coalhada. Existem três tipos de coalho:

  • Animal: extraído do estômago de bezerros
  • Vegetal: obtido de plantas como cardo e figo
  • Microbiano: produzido por fungos ou bactérias modificadas

A coagulação pode ocorrer de forma:

  • Ácida: quando só o pH é suficiente (ex: iogurte, queijo fresco)
  • Enzimática: com uso de coalho (queijos duros e maturados)

Essa fase leva de 30 a 60 minutos e exige temperatura e pH específicos. A textura da coalhada vai definir muito da textura do queijo final.

5. Corte e Dessoragem da Coalhada

Depois de formada, a coalhada é cortada em pequenos cubos com uma lira ou faca. O objetivo é liberar o soro do leite — aquele líquido esverdeado que aparece na produção.

Quanto menor o corte:

  • Mais soro é expulso
  • Mais seco será o queijo final

A coalhada então é cozida ou aquecida, para ajudar a liberar ainda mais soro, e agitada suavemente. Depois, ela é deixada para descansar e decantar. O soro pode ser aproveitado para fazer ricota, bebidas fermentadas ou até ração animal.

6. Moldagem e Prensagem: O Queijo Ganha Forma

A coalhada é colocada em moldes que dão forma ao queijo. Alguns queijos não são prensados (como o frescal), mas a maioria passa por um processo de pressão, que:

  • Expulsa o soro restante
  • Une os grãos de coalhada
  • Define a textura e densidade

O tempo e o peso da prensa variam conforme o tipo de queijo. Prensas caseiras simples podem ser feitas com pesos ou sistemas manuais.

7. Salga: Muito Além do Sabor

A salga pode ser feita:

  • A seco (esfregando sal diretamente no queijo)
  • Em salmoura (imersão em água com sal)
  • Mista (combinação dos dois)

A função do sal vai muito além do sabor:

  • Controla a fermentação
  • Forma a casca
  • Protege contra bactérias indesejadas
  • Ajuda na perda de umidade

A salga dura de algumas horas a dias, dependendo do queijo.

8. Maturação e Afinagem: A Magia do Tempo

É aqui que a verdadeira alquimia acontece. O queijo é levado para câmaras de cura com temperatura e umidade controladas, e fica ali por semanas, meses ou até anos.

Durante a maturação:

  • Enzimas e microrganismos continuam atuando
  • A textura muda: de macia para firme ou quebradiça
  • Os sabores se intensificam e se complexificam

Os queijos com casca lavada (ex: taleggio), casca florida (ex: brie) ou casca natural (ex: parmesão) passam por tratamentos específicos, como lavagens regulares ou inoculação com fungos.

O profissional que cuida desse processo é chamado de afinador ou fromager. Ele decide quando o queijo está pronto.

9. Tipos de Queijo e Suas Particularidades de Fermentação

Cada tipo de queijo exige uma combinação específica de fermentos, tempo, temperatura e processos. Exemplos:

  • Brie: fermentação mesofílica + casca florida com P. camemberti
  • Roquefort: perfurado para entrada de oxigênio e cultivo de P. roqueforti
  • Minas Frescal: fermentação rápida, sem maturação
  • Parmesão: cozimento da coalhada + longa cura + fermentos termofílicos

Cada detalhe importa: desde o tipo de leite até o ambiente de maturação.

10. Produção Artesanal x Produção Industrial

Na indústria, os processos são padronizados para garantir consistência e segurança. Já na produção artesanal, o foco é a expressão do terroir — ou seja, das condições locais de solo, clima e microflora.

Diferenciais da produção artesanal:

  • Leite cru (em alguns casos)
  • Menos aditivos
  • Maturação natural
  • Sabor mais complexo

Ambas têm seu valor, mas o movimento “slow cheese” valoriza o queijo como expressão cultural e alimentar viva.

11. Benefícios da Fermentação no Queijo para a Saúde

A fermentação transforma o queijo em um alimento funcional. Alguns benefícios incluem:

  • Probióticos (em queijos não pasteurizados ou pouco maturados)
  • Redução da lactose, tornando-o mais digerível
  • Vitaminas do complexo B e K2
  • Cálcio e fósforo biodisponíveis

É claro que o consumo deve ser moderado, mas o queijo fermentado pode fazer parte de uma dieta equilibrada.

Conclusão: Do Leite ao Queijo, um Processo Vivo

Transformar leite em queijo é uma das expressões mais belas da fermentação natural. Cada etapa — do cultivo das bactérias à maturação lenta — exige atenção, técnica e respeito pelo tempo.

Mais do que um alimento, o queijo é o resultado de uma dança entre o homem e os microrganismos. Um produto vivo, que respira, envelhece, muda e encanta.

Se você nunca tentou fazer queijo em casa, talvez esse seja o momento. E se preferir apenas degustar, que seja com mais consciência e admiração por todo o processo que existe por trás de cada fatia.

Extras: Para Quem Quer se Aprofundar

📚 Leituras recomendadas:

  • Queijos Artesanais do Brasil – Fernando Oliveira
  • The Art of Natural Cheesemaking – David Asher

🧪 Fontes confiáveis:

  • FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação
  • Instituto Cândido Tostes (Brasil)

🔧 Equipamentos básicos:

  • Termômetro
  • Lira para corte da coalhada
  • Moldes
  • Prensa manual
  • Panos de algodão

🎥 Documentários:

  • Cooked (Netflix)
  • Cheese: A Love Story (Amazon Prime)

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